Por Enio Squeff*
As relações naturalmente promíscuas
entre membros do Congresso e a contravenção penal só são uma novidade por terem
se desvelado na atual conjuntura. No mais, que tudo tenha acontecido com um
moralista de plantão, tido pela grande imprensa como o mais honesto dos
congressistas, não chega a ser um enredo para novela de mau gosto.
Somerset Maugham, no seu conto A
Chuva, põe um pastor a ser flagrado numa relação mais que escandalosa com uma
prostituta. Nada que seja pior do que o conluio entre o senador Demóstenes
Torres e o contraventor Carlinhos Cachoeira. É que os enredos de novelas e de
óperas, quando minimamente coerentes, podem ser inferiores à realidade. A
tragédia da ópera Carmen, de Bizet, baseado no romance homônimo de Prosper
Merimée, não é que o protagonista se junta a um bando de contraventores –
contrabandistas – para seguir a sua amada, mas o fato, mais que corriqueiro, de
que, ao se tornar bandido, acaba também como um assassino.
Não que
os crimes que incluam políticos e contraventores estejam isentos de
protagonizarem também mortes. O caso do prefeito Celso Daniel em Santo André
prefigura a quantas mortes pode chegar o que, à primeira vista, seria um caso
de corrupção, um “simples” caso de corrupção. A diferença para o episódio que
gerou uma CPI parece residir na mediocridade de ambos os personagens do fato
denunciado recentemente, ou, se quisermos, na sensaboria dos protagonistas.
Na
galeria de personagens literários brasileiros do século 21, a convivência com o
jogo do bicho não chegava a machucar ninguém. Mas não havia também qualquer
proibição à prática. A contravenção, modernamente, considerada que tal, põe em
relevo a mesma questão que se coloca para o caso dos tóxicos: quem nasceu
primeiro, a oferta ou a demanda: o ovo ou a galinha? Um dos exemplos
emblemáticos de Machado Assis – dos poucos em que ele assume diretamente uma questão
política – se dá na sua peça O Quase Ministro. O título já diz tudo, inclusive
sobre a ironia do escritor. Mas a trama em si fala muito pouco para os nossos
tempos: o que avulta é a ambição humana – nada de conchavos, tendo como pano de
fundo o poder econômico.
É claro
que isso existia. O milagre de o Brasil ter se tornado uma única nação, parece
não ter obedecido à lógica da distância da metrópole, como ocorreu na América
Latina de fala espanhola. Não são poucos os historiadores que defendem a
anterioridade da data da nossa independência; o Brasil teria se tornado um país
desligado de Portugal, não em 1822, quando Dom Pedro I institucionalizou o que,
de fato, já tinha acontecido em 1808. Ao dar ao Brasil o status de reino, Dom
João VI sabia que o resto seria uma questão de tempo para os ajustes, como, de
qualquer modo, aconteceu.
Mas na
América espanhola as diferenças e a lonjura da metrópole se fizeram consoante
os interesses econômicos dos países europeus. A Inglaterra prescindiu de perder
tempo com as possíveis dissidências brasileiras: um rei submisso à Coroa
britânica, como foi àquelas alturas com a monarquia portuguesa, era tudo que a
Inglaterra queria depois da derrota de Napoleão.
Nada
disso deve ter obstado as burlas, as grandes jogadas financeiras. A história do
Brasil tem seus detratores e muitos historiadores sérios: falta, porém, contar
o que só nos está sendo revelado agora, após o período militar – do qual,
aliás, só sabemos o que é público e notório – as torturas, a covardia de
muitos, a coragem de outros – mas e a corrupção? Qual o custo real da
Transamazônica, da ponte Rio-Niterói, de Itaipu, ou dos aeroportos como
Viracopos, construídos justamente durante a ditadura?
São
questões em aberto. Na peça de Machado, ser ministro não importava tanto como
hoje. Quem mandava era o império e suas tenazes que parecem terem se estendido
até a República Velha. Jorge Street, único empresário paulista que aceitou as
reivindicações da primeira greve laboral conhecida no Brasil e que se deu, em
1917, em São Paulo, foi exemplarmente punido por sua abertura em relação aos
problemas sociais. Teve cortado seu crédito pelos banqueiros da época. Nenhum
problema de corrupção, em princípio – mas seja qual for o nome que se dê às
maquinações de empresários com o Estado, contra uma classe social, como a dos
trabalhadores, o poder do capital foi usado de forma a suprimir a voz
discordante do meio empresarial.
Ao que
parece, porém, o tema da corrupção era menos importante – ou um assunto
irrelevante perante o poder efetivo, real. Napoleão sempre tolerou que
Talleyrand – pai "natural" do grande pintor Eugène Delacroix –
surrupiasse onde pudesse: julgava-o mais útil como diplomata, do que condenável
por seus procedimentos, digamos, nada heterodoxos em relação ao dinheiro
público.
No Brasil
atual, por conta e risco – quem sabe – de “um deixa pra lá” muito comum e
leniente com a corrupção – chegou-se, por fim, ao inaceitável. As próprias
relações do senador com o bicheiro, parece só se terem tornado um assunto
nacional por esses “imbroglios” da história, ou antes, uma submissão
paradoxalmente, momentânea digamos, da polícia com o governo. Essa, parece, a
razão da surpresa da grande imprensa com o fato. O banco dos réus ocupado pelo
senador Demóstenes Torres deveria, segundo a lógica da mídia, estar sendo
tomado por alguém do governo; ou de esquerda. As capas e manchetes foram sempre
monopolizadas pelo senador como "paladino" da moralidade, e portanto,
do sistema. Só um erro de percurso explica os acontecimentos. Daí, porém, a
busca quase desesperada da mídia: ao que parece, é preciso encontrar fatos que
incriminem o governo e seus aliados.
É isso
que parece fazer da história e da arte o que elas são (se é que as duas sejam,
afinal, muito diferentes): troquem-se os nomes e o filme será, sem tirar nem
pôr, igualzinho à novela; ou à ópera, mas principalmente à realidade. Esse,
aliás, parece o consolo consabido – uma alimenta a outra. O difícil agora é que
o enredo siga o ramerrão. E que quem tenha de responder pelo mal feito não seja
o governo – mas a oposição. A ver a ópera e esperar o “grand finale”.
*Enio Squeff é artista plástico e
jornalista.
Fonte:Carta Maior
Fonte: http://carlos-geografia.blogspot.com.br/
No: Vermelho
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